A onda de mobilização que tomou conta da Avenida Roberto Dinamite neste domingo (3), em frente a São Januário, não foi apenas um chamado esportivo, mas também um apelo político e social. Em meio à euforia do jogo Vasco x Bahia, a voz de Oscar Lopes, morador e ex-vereador de Tijucas, cortou o ar. Em um desabafo emocionado, transmitido ao vivo pela VascoTV, ele ressaltou a necessidade de união política para “ajudar o Vasco”.
O estádio de São Januário segue interditado por determinação judicial, desprovido da animação e do ruído dos torcedores. O juiz Marcello Rubioli justificou a medida alegando riscos associados à comunidade da Barreira do Vasco, além do tráfico de drogas e disparos de armas de fogo na região. “As ruas estreitas ao redor do estádio não oferecem espaço para escapar, frequentemente se tornando locais lotados de torcedores consumindo álcool,” observou Rubioli.
Nesse cenário desalentador, surge uma luz ao final do túnel. Dra. Gisele Cabrera, diretora jurídica do Vasco, anunciou que o clube está em negociações avançadas com o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro para a elaboração de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que possa extinguir o processo que interdita São Januário. “Estamos em conversas muito avançadas, só finalizando alguns termos desse acordo,” afirmou Gisele Cabrera.
O impasse jurídico não afeta apenas os fanáticos pelo futebol. Um estudo do Observatório do Trabalho Carioca, vinculado à prefeitura do Rio, estima que aproximadamente 18 mil moradores da região da Barreira do Vasco sofrem as consequências do fechamento do estádio. Por partida realizada sem a presença da torcida, cerca de 300 trabalhadores autônomos perdem oportunidades de renda, e outros 250 ficam impossibilitados de realizar vendas externas. A redução na receita chega a atingir 60%, afetando a estabilidade financeira da comunidade.
Não menos relevante é a discussão sobre os critérios de segurança que regem as decisões judiciais. Um levantamento realizado pelo aplicativo Fogo Cruzado mostrou que o Maracanã, outro ícone do futebol carioca, registrou números de tiroteios semelhantes aos de São Januário neste ano. No entanto, a possibilidade de fechamento do “Templo do Futebol” jamais foi cogitada.
No último domingo, enquanto torcedores assistiam à partida Bahia x Vasco em um mega telão instalado na Avenida Roberto Dinamite, a mensagem de Oscar Lopes ecoava como um símbolo do que essa luta representa. Não é só um jogo. É uma batalha por dignidade, segurança e oportunidades para uma comunidade inteira.
Enquanto a torcida vascaína entoava “Na Barreira eu vou festejar”, o desejo latente de ver São Januário reaberto se transformava em um grito coletivo — um grito que vai além dos limites do estádio e ressoa nas esferas políticas e sociais do Rio de Janeiro e do Brasil.
Fundado em 1898, sob nome de Club de Regatas Vasco da Gama, a instituição surgiu como praticante do remo
Fundado em 1898, sob nome de Club de Regatas Vasco da Gama, a instituição surgiu como praticante do remo. Por lá, a bola só começou a rolar em 1916, por influência de Raul Campos. Assim como os demais portugueses que vinham ao Brasil na época, ele chegou com o objetivo de ingressar no clube carioca. Se associou em 1913. Um ano depois, virou sócio benemérito. Mais 365 dias se passaram e se tornou presidente. A partir daí, começa a história lusitana no esporte bretão.
O primeiro time de futebol vascaíno surgiu sob descontentamento dos praticantes de remo. Depois de um início com resultados complicados, a agremiação começou a procurar jogadores em ligas periféricas, independente de cor ou condição social. Encontrou e entrou para a Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT), que organizava o Campeonato Carioca da época, com uma equipe formada, em maioria, por negros e pobres.
Pouco tempo depois, em 1922, o Vasco foi campeão da Série B do Estadual e conquista o acesso à elite no ano seguinte. Comandado pelo uruguaio Ramón Platero, o time venceu 11 jogos, empatou dois e perdeu apenas um. A excelente campanha levou ao título da primeira divisão.
Recém-campeã da elite carioca, a equipe, que começou a ser montada em 1919, sofreu obstáculos para continuar. A Liga impôs uma regra que proibia analfabetos de atuarem no campeonato. Com ajuda do associado e bibliotecário da instituição portuguesa, Custódio Moura, os atletas conseguiram aprender a ler e escrever os dados necessários para seguirem jogando.
Um ano depois de levantar o troféu, o clube se viu em mais uma situação complicada: os rivais se reuniram para fundar a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA). Por ser o atual campeão, o Vasco foi convidado, mas com uma restrição: deveria excluir 12 de seus jogadores do elenco – negros e pertencentes das camadas populares – por não terem “condições sociais apropriadas para o convívio esportivo”. No dia 7 de abril, José Augusto Prestes, presidente à época, redigiu e assinou a “Resposta Histórica”, que abria mão de fazer parte da AMEA e priorizava a manutenção dos desportistas.
A representatividade em campo refletiu na sociedade, principalmente no subúrbio, que se identificou com os atletas. O apelo da torcida vascaína era muito grande, mesmo sem ter um lugar para chamar de “casa”. A Cruz de Malta precisava pagar aluguel à rivais para conseguir atuar em seus estádios.
A exclusão da instituição lusitana da Associação não foi bem recebida pelo público. Com partidas sempre lotadas, o Vasco foi campeão do torneio organizado pela LMDT de forma invicta. Diante do sucesso e da repercussão, o clube é convidado para ingressar novamente na AMEA. Desta vez, sem critérios ou restrições.
Nélson, Leitão, Mingote, Nicolino, Claudionor, Artur, Paschoal, Torterolli, Arlindo, Cecy e Negrito, além do treinador Ramón Platero, foram 12 dos responsáveis por popularizar o esporte no Rio de Janeiro. Os negros, operários e semianalfabetos poderiam, e seriam, campeões.
A força cruzmaltina só aumentou. Sua torcida apaixonada liderou a campanha de arrecadação de recursos para comprar um terreno em São Cristóvão, escolhido pelo clube por ser parecido com seu local de fundação, na zona portuária do estado. 685 contos e 895 mil réis foram juntados, além de dois mil contos de réis para a construção.
Em 21 de abril de 1927, dez meses depois do início da obra, ocorreu a primeira partida no Estádio de São Januário, uma derrota carioca por 5 x 3 para o Santos. O placar pouco importou para uma torcida que acabava de erguer um estádio privado dos próprios bolsos.
Quando começaram a escrever esta história, provavelmente nenhum dos Camisas Negras imaginava o tamanho que teriam. Desde então, dentre outros troféus, a agremiação conquistou 24 títulos estaduais, quatro Brasileiros, uma Copa do Brasil, uma Libertadores e uma Mercosul.
Glórias, lutas, vitórias. Esta é a história de uma das maiores instituições do Brasil, que, no dia 21 de agosto, deste ano completou 125 anos.